sexta-feira, 10 de setembro de 2010

sobre monoglotia e estudo de idiomas

Essa semana, li no blog de um professor e amigo um texto no qual ele falava da dificuldade de se comunicar em língua estrangeira, mesmo já tendo dedicado a elas muitas horas de estudo.

Fiquei feliz pela possibilidade de tratar do assunto, ainda mais que, na Academia, as pessoas não costumam falar muito sobre suas dificuldades com qualquer forma de conhecimento. Preferem, por vaidade pura e simples, gastar tempo exibindo o que sabem e dominam, a tratar de dificuldades e ignorãnças, como diz o Manoel de Barros.

Costumo dizer que o que faz um intelectual de verdade é o modo como ele lida com a sua ignorância. Com o espectro, sempre mais amplo, daquilo que ignora, em detrimento do restrito universo das coisas que sabe (ou acredita saber). Saber lidar com a própria ignorância evita o maior defeito de um intelectual: a vaidade.

Mas não quero me desviar do meu tema de hoje. Outro dia escrevo sobre a vaidade no mundinho dos intelectuais e dos acadêmicos.

De onde vem a dificuldade com línguas? De onde vem, mesmo já tendo estudado, o medo de errar, que leva ao mutismo? Penso em arriscar algumas hipóteses, todas ligadas ao modo como se concebe o conhecimento e, consequentemente, o aprendizado. Com intuito de trocar experiências, contarei algumas estórias que me levaram a reflexões (todas absolutamente destituídas de base livresca) sobre a atitude de aprender línguas.

Também eu, na infância e na adolescência, mantive a concepção de que estudar inglês seria como ceder à dominação americana, ao aculturamento etnocêntrico. Curioso como desde cedo conheci pessoas que falavam vários idiomas, mas que, vazias de conteúdo, nada tinham a dizer em nenhum deles. Esses fatores me impediram de ver a importância de estudar línguas desde muito cedo, e já adulto, tive que fazer um esforço imenso para “tirar esse atraso”.

Junto com o aprendizado e o estudo, vieram as reflexões sobre eles.

Percebi que nunca se aprende uma língua. Aprende-se uma cultura, ou melhor, habitua-se a uma cultura. Torna-se familiar com ela. Por isso, é totalmente diferente estudar o idioma que se fala no Chile e na Espanha, em Brasil e em Portugual, no Canadá e na Austrália. Não se trata apenas de aprender palavras, mas sim de penetrar num novo mundo. Em cada mundo desses, as pessoas pensam de modo diferente, comem e bebem coisas diferentes, falam com uma musicalidade e entonação diferentes, tem uma literatura, crenças, hábitos tudo diferente.

Aprender uma língua é mais do que dominar instrumentos de conversão de palavras. Por isso, quando se compreende isso, o dicionário perde muito da sua importância.

Há alguns anos, quando fazia estudos de inglês no Canadá, conheci um amigo, brasileiro, que falava um inglês excelente. Como estávamos dispostos a praticar, decidimos que jamais conversaríamos em português. Depois de alguns dias convivendo juntos, uma circunstância emergencial me forçou a falar em português e passamos um dia inteiro viajando e nos deliciando com a última flor do Lácio. Ao final do dia, ele me disse: “Cara, você é outra pessoa em português...bem mais divertido e engraçado.” Claro, o meu inglês formal, sem gírias, sem os maneirismos e convenções do dia-a-dia tornou-me sério, puramente sintático. Naquele dia, concluí: sou uma pessoa em cada língua.

Mas quando soube que faria uma tradução na prova do doutorado, fiquei desesperado. Porque traduzir é algo talvez mais complicado do que ler um texto numa língua que não se domina, com o único compromisso de tentar estabelecer uma compreensão própria. Como transpor realidades, de per se únicas, irrepetíveis, incomensuráveis? E enquanto via os colegas procurando professores de língua para cursos intensivos e instrumentais de última hora, fui até a livraria e comprei um livro sobre teoria da tradução. Com exercícios práticos, é claro.

Creio que o mutismo tem duas causas principais, alicerçadas em concepções epistemológicas de senso comum, bastante difundidas:

Primeiro, que a comunicação pode se dar de modo perfeito, sem ruídos ou incompreensões, principalmente quando falamos a mesma língua. É preciso ser indulgente com a linguagem. A comunicação é sempre falha. Mesmo na mesma língua, não nos compreendemos totalmente. Não podemos escapar dessa nudez da linguagem. Por isso, toda nudez já está perdoada.

Segundo, que a comunicação verbal, presencial, se restringe a palavras, à emissão pura e simples de sons articulados. Mas o milagre da comunicação é exatamente que ela se dê. Aí vale tudo: gestos, expressões, uso de línguas-meio. Um sorriso vale muito. Quando viajo, faço sempre um esforço sincero para aprender algo da língua local, nem que seja uma expressão ou outra. Além de demonstrar empatia, essa atitude é sinal de respeito com os viventes do lugar.

Mas há ainda um terceiro fator: linguagem é poder. E o modo como falamos define a nossa posição na sociedade. É como o tipo de roupa que usamos. A verdade da aparência. O simples “não falar” a língua local já nos coloca numa posição social diferente: ser estrangeiro é algo terrível em alguns lugares, onde a intolerância grassa, enquanto, em outros, tal condição basta como atestado de honestidade, riqueza etc. São exemplos, ser iraquiano nos EUA e americano no Brasil, respectivamente.

O que incomoda não é tanto o fato de não ser compreendido, mas o medo de ser tido, entre iguais, como menos estudado, menos culto, menos erudito do que se é de fato. No fundo, não deixa de ser uma dificuldade com a igualdade. Temos medo de sermos discriminados por “falar errado”, assim como discriminamos (ainda que silenciosamente) alguém que se dirige a nós, em português, dizendo que ficou “embreagado”, ou que precisou renovar o “rezixtro”, quando "a gente fomos" embora.

Conto sempre a estória do pedreiro que fazia uma reforma no meu apartamento uma vez. Como soubesse que eu era advogado (imagine o significado disso para ele), tratou de selecionar o que tinha de melhor em seu vocabulário para me anunciar: “Doutor, modéstia à parte, faltam 5 sacos de cimento!”

Esse fator, o da linguagem como poder que nos define socialmente, parece-me o lado mais difícil de morar em um país cuja língua não se domina com fluência. Não se trata de ser estrangeiro. Isso até tem lá suas vantagens. Trata-se de não ser cidadão por inteiro, de ser gente pela metade. De ser igual.

Um outro amigo, juiz no Maranhão, conta uma estória engraçada de quando esteve na Rússia. Por conta de problemas com a bagagem no check-in, acabou se encrespando com uma funcionária da empresa aérea. Irritado, partiu para as vias de fato linguísticas: começou a xingar a moça em português. Ela não teve dúvida: retribuiu com terríveis palavrões. Em russo! Não consigo imaginar conflito mais violento.

Conhecimento é processo. Não é uma coisa, que se tem ou não se tem. O aprendizado de uma língua é também processual. Não é algo que se sabe ou não se sabe. É algo com o qual se está mais ou menos familiarizado. Então, não praticar é um meio de nunca estar familiarizado. O mutismo coloca o não-falante num ciclo vicioso.

Quem gosta de estudar idiomas sabe que, ao invés de falar apenas, é importante experienciar a cultura, da qual a língua é apenas a ponta do iceberg: comidas e bebidas típicas, entonação, hábitos, leituras, música, filmes, teatro, enfim, há que se entrar no mundo das pessoas que vivem a língua que se quer “aprender”.

Por fim, repito o que sempre digo aos meus alunos: dediquem-se a estudar idiomas (culturas), nem que seja para ver que a vida sempre poderia ser vivida de outro modo. A monoglotia é a antesala dos preconceitos. Participar de pelo menos um mundo diferente torna-nos não apenas mais interessantes ou donos de um status social mais elevado.

Torna-nos mais pacientes, compreensivos e tolerantes com a diferença.

fonte: Isaac reis

FALE JÁ ESPANHOL

CURSOS, TRADUÇÕES E AULAS DE ESPANHOL

Professor de Espanhol Gregorio Guevara

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